Poucos artistas como o meu admirado Lluís Llach escrevêrom tão delicadamente sobre um povo que carrega acima de si uma sorte de maldição atávica. A canção «Palestina», incluída no álbume Geografia (1988), percorre os lugares e tropos habituais, mas numa infrequente mistura da denúncia pola falta de liberdades e de otimismo por um futuro melhor.
Cuido que jamais passaria pola cabeça do Llach que, 35 anos depois, a Palestina continuasse presa dos mesmos males.
Els teus fills els soterren quan encara somriuen
Esperant que així el teu ventre es torni un erm.
(Os teus filhos são soterrados quando ainda sorrim
Esperando que assim o teu ventre devenha um ermo).
Os filhos da Palestina continuam sendo soterrados na flor da vida, mesmo ainda quando essa flor nem chegou a desabrochar: a organização internacional Human Rights Watch informava o passado mês de agosto que no que ia de ano Israel assassinara já 34 menores de idade. A repressão depois dos ataques iniciados polo Hamas a 7 de outubro já causou quase o triplo dessa cifra em só 48 horas, 91 confirmados a dia 9.
Quan et nafren els braços, l’odi esdevé feixisme…
(Quando te ferem nos braços, o ódio torna-se fascismo).
O último ataque do Hamas contra Israel, assassinando civis desarmados, não tem qualquer justificativa, como tampouco a têm as décadas de crimes contra a humanidade e a legalidade internacional praticadas polo Estado israeliano.
Arrepiam as notícias que chegam dos territórios ocupados palestinianos —ocupados por colonos isarelenses, convém aclarar—. Casas palestinas derrubadas por escavadoras para construir no seu lugar casas e kibutz —granjas coletivas— israelianas, ao tempo que os moradores legítimos e milenares não só devem procurar um novo lugar para malviver, mas também devem pagar ao Estado de Israel polos custos administrativos e operativos dos derrubamentos. Militares patrulhando as comunidades palestinas, dividindo famílias e respondendo com fogo as pedradas lançadas por miúdos que vem nos toscos projéteis a única via de canalizar a ira. Grupos de ultraortodoxos assediando famílias palestinianas, roubando nas suas casas, enquando os acompanham ora militares, ora paramilitares, que respondem com fogo a quem ousar resistir. E muito mais.
São décadas de vulneração de toda lei, mas também de humilhação, de fazer ver à população palestina que são menos do que um ser humano.
Seran les teves ales, d’un vol que veuràs lliure
Si s’allunya la venjança del teu cor.
(Serão as tuas asas, de um voo que verás livre
Se se afastar a vingança do teu coração).
A força de que goza o Hamas em Gaza desde há quase duas décadas nasce na sede de vingança polos crimes e humilhação do Israel. Isso não justifica de maneira nenhuma o assassinato de civis, mas é preciso entender isto para compreender que a solução planejada polo Estado de Israel só trará mais dor desnecessária.
Naixeran oliveres de destí mil·lenari
Perquè els ocells hi cantin el teu nom, que és coratge,
El teu nom, Palestina.
(Nascerão oliveiras de destino milenar
Porque os páxaros cantam aí o teu nome, que é coragem,
O teu nome, Palestina).
Sobreviver em Gaza é um ato de coragem. Um exíguo território que é oito vezes menor ao concelho de Lugo e no qual vivem perto de dous milhões de pessoas. «O maior cárcere ao céu aberto do mundo».
A 9 de outubro, o jornalista Gideon Levy escreve no Haaretz o artigo intitulado «O Israel non pode encarcerar dous milhões de habitantes de Gaza sem pagar um preço cruel». E continua:
«Por trás de tudo isso está a arrogância israelense; a ideia de que podemos fazer o que quigermos, que nunca pagaremos o preço e seremos punidos por isso. Continuaremos imperturbáveis.
Prenderemos, mataremos, assediaremos, desapropriaremos e protegeremos os colonos ocupados com seus pogromos. […] Dispararemos contra pessoas inocentes, arrancaremos os olhos das pessoas e esmagaremos as suas caras, expulsaremos, confiscaremos, roubaremos, arrancaremos pessoas das suas camas, realizaremos limpeza étnica e, claro, continuaremos com o cerco inacreditável à Faixa de Gaza […].
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tem uma grande responsabilidade polo que aconteceu e deve pagar o preço, mas nem tudo começou com ele e tampouco terminará depois que ele partir. Temos agora de chorar amargamente polas vítimas israelitas, mas também devemos chorar por Gaza […], que nunca conheceu um único dia de liberdade».
A sociedade israeliana não é monolítica, mesmo que a declaração de guerra —mas será que ela rematou alguma vez?— exija união frente o inimigo comum. A sociedade israelense é mais do que os paramilitares, os ultraortodoxos, as aves de rapina colonizadoras… Igual que a sociedade palestiniana é mais do que o grupo integrista Hamas, incluso mais que a que malvive em Gaza ou nos territórios ocupados, pois inclui a que tem passaporte israelense e luita na política institucional polos direitos do seu povo.
Porque aqui cabe mencionar que o povo palestiniano se encontra agora mesmo entre duas águas perigosas que ameaçam com afogar as exíguas esperanças de liberdade. A do poderoso exército que leva anos matando sem piedade e a do grupo fundamentalista cuja inspiração de vida e de governo é um Califato em que a liberdade, as desviações sexuais e os direitos das mulheres não têm lugar. Ambas as duas, por sinal, são águas que levam muito tempo a se retroalimentarem, deixando pouco espaço para outras.
Quem apoiamos a causa da Palestina não o fazemos —na imensa maioria— movidos polo ódio a povo nenhum, mas movidos polo princípio inalienável da livre autodeterminação dos povos e o respeito aos direitos humanos. E isto deve ser um ponto assente, sem fissuras.
El teu nom, una rosa, el teu nom Palestina.
El teu nom, un bell estel a l’Orient.
El teu nom, esperança. El teu nom una espina,
El teu nom, mirall precís que ens reflecteix.
(O teu nome, uma rosa, o teu nome, Palestina.
O teu nome, uma bela estrela do Oriente.
O teu nome, esperança. O teu nome, uma espinha,
O teu nome, espelho preciso que nos reflete).
Por vezes, um espelho que nos reflete os próprios monstros que nos assombram.
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