#Acabou

Competição de futebol. Mulheres no relvado vencem outras mulheres. Entrega de troféus; homens parabenizam mulheres. Um dos varões, de supetão, sujeita com firmeza a cabeça, beija-a e despede-se dela com umas palmas nas costas. As primeiras reações nas redes sociais são de surpresa; nos meios de comunicação convencionais, a maioria fala em anedota, gesto espontâneo… Minutos depois, nos vestiários, a jogadora intervém em direto polo telemóvel numa retransmissão das celebrações, respondendo perguntas do outro lado do ecrão. Ali é peguntada sobre o beijo. «Não gostei nada». E acrescenta um bem eloquente: «o que podia fazer?».

Não foi até esse momento que começou a ferver a indignação. Fôrom só oito palavras —no original castelhano— que acabárom produzindo exponencialmente milhares de horas de televisão, rádio e de papel impresso em todo o mundo, bem como terabytes de informação, memes e debates nas plataformas sociais.

Só oito palavras que deixárom claro que onde as câmaras aparentemente captavam um gesto de cumplicidade, realmente havia um ato não consensual. Não serem colegas, mas patrão e subornidada, já deveria ter acendido alguns alarmes, ativadas algumas cautelas.

O vídeo que reproduzo acima foi divulgado também nas redes quer para atacar a vítima, quer para insinuar —ou afirmar— que a polémica fora promovida polo Governo espanhol em funções para distrair a atenção pública das negociações políticas para a investidura.

O que demonstra o vídeo, porém, é a diferença entre dar uma informação sem terem falado com a vítima e o que teria acontecido se o figessem. Do que teria acontecido se pensassem nela como uma pessoa e não como um acessório no bem maior que era a consecução de um título desportivo.

Falando nisso, inegável, mália às palavras da afetada, que nas primeiras horas a indignação foi princpialmente só social, procurando a imprensa minimizar o impacte e centrar o debate no importante, que eram a competição e o título. Era quase uma questão de Estado, nada podia perturbar esse fito. Afinal, era só um beijinho, «un piquito», chegaria a dizer o perpetrador. Como um pequeno ósculo de apenas um segundo poderia embaçar o sucesso desportivo? Anatema!

O ruxe-ruxe social ativou o dominó e chegárom as primeiras pressões políticas, primeiro escondidas nas entrelinhas, depois mais explíticas. E os primeiros pedidos de demissão para o beijador, que se viu forçado a gravar um vídeo de desculpas e a enviar um comunicado conjunto em que tanto ele quanto a vítima negavam gravidade ao acontecido.

Acontece que a vítima se rebelou e desmontou o tal comunicado, denunciando terem colocado na sua boca palavras que nunca dixera. Como antes colocaram nos seus lábios os doutra pessoa sem lhe terem dado opção.

O que podia fazer?

E aí voltamos para o vídeo inicial da vítima desta agressão e para as oito palavras expressadas na sua língua materna. «No me ha gustado nada», mas especialmente aquele «¿qué podía hacer?». Essa pergunta, entoada como resignação ou lamento, era o reflexo vivo da impotência de um ser humano que se vira submetido aos caprichos de um outro; da dificuldade para reagir ou para se negar a um gesto do seu superior hierárquico; da assimetria de posição entre quem, pese a ser protagonista do fito nos relvados, era uma peã frente ao Godfather que manejava os fios do negócio.

E mesmo que ela tivesse restado importância ou até a tivesse negado, poderíamos falar do que no direito se chama vício no consentimento, isto é, circunstâncias que anulam a alegada voluntariadade de um ato entre duas ou mais partes. No caso que nos ocupa, um deles é a assimetria de posição social e de poder entre as duas partes; outro, evidenciado nas imagens do momento, a violência, neste caso o uso da força para segurar a cabeça da vítima e, sem possibilidade de a deixar mover-se, dirigir de supetão uns lábios contra outros. Nada de exagero ou de dramatização há aqui, embora só a um julgado caberia analisar as provas e fixar o peso de cada elemento para chegar a determinar o vício.

O movimento iniciado há uma semana conseguiu, por enquanto, que instâncias superiores destituíssem temporalmente o agressor e decretassem medidas de proteção à vítima. Aforro o que aconteceu polo meio, com estômagos agradecidos aplaudindo mensagens antifeministas e outros aprendizes de Godfather —ou aspirantes— reduzindo tudo à categoria de anedota.

O importante é que o movimento não parece que vá parar até conseguir mais algumas cabeças, porque os cúmplices nunca são bem vistos —Jorge Vilda, Luis de la Fuente, o nosso Rafael Louzán…— e porque a podrémia estrutural vai bastante além da cabeça visível. O movimento também deixou assinalados todos aqueles que, em posição de privilégio e pouco a perder, se recusárom a apoiar explicitamente a vítima. Os que só se atrevêrom a falar depois da inabilitação temporária do agressor, bem podiam ficar calados para sempre.

Uma cloaca imunda

Menção própria merece o jornalismo desportivo espanhol, que na imensa maioria é uma cloaca imunda, dominada por um machismo abafante e indissimulado, com uma linha editorial tão cavernícola que em ocasiões faria palidecer a extrema-direita organizada. Apesar de terem as declarações da vítima, demorárom longuíssimas horas em verem a gravidade do problema. Algum pope das ondas entoou o mea culpa por não ter sabido analisar bem a situação. Desse pecado não está livre ninguém, advirto, mas as palavras da vítima eram claras o bastante e houvo quem, simplesmente, as deu por não pronunciadas, e isso já não é um erro de análise, mas uma omissão intencionada.

E uma cloaca não faria jus ao seu nome se não estivesse cheia de excrementos. Durante estes dias de tanta produção de opinião, houvo destacados predicadores mediáticos que, não tendo cometido erros de juízo —simplesmente, falárom de outras cousas—, fôrom fecundos em evidenciarem o quão conscientizados estão e em nos ensinarem como e aliados feministas são. Mas acontece —alerta: palavrões à solta!— que sempre fala da merda quem a leva no cu e algum destes vultos já foi assinalado por episódios de chantagem sexual.

E na Galiza?

Sejam certas ou não estas últimas acusações, a pulsão nas redes parece ir determinada a abrir um #MeToo no âmbito do jornalismo, começando polo desportivo espanhol e, quem sabe, talvez ao jornalismo galego. As minhas colegas têm-me contado histórias para não dormir do que acontece nalgumas redações. No jornalismo, mas também no audiovisual, na investigação científica, na universidade… Eu não lhes vou roubar o momento de serem elas a decidirem quando querem dar esse passo, mas muitos deveriam ir pensando já nalguma porta giratória ou em comprar um bilhete para bem longe.


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