Ortografia portuguesa para o galego

O presente artigo foi concebido como uma resposta, didática mas não exaustiva, ao alargado artigo publicado por Lois de la Calle Carballal no diário Praza Pública, precisamente intitulado «Ortografía portuguesa para o galego?». Antes de mais, quigera agradecer ao senhor De la Calle o tempo que dedicou para expor a sua tese, pois é incomum dar com alguém que com tanto empenho defenda a sua postura, se bem, como se verá, estou em completo desacordo.

Língua falada, língua escrita

No primeiro parágrafo do artigo aparece recolhida a tese principal do mesmo, mas com um argumento viciado.

Todo sistema de escritura alfabética debe representar do xeito máis fiel e sinxelo a lingua que representa.

Falo em argumento «viciado», porque se trata mais de um desejo do autor —que muitas pessoas poderiam compartilhar, inclusive eu— do que algo demonstrável pola experiência. De facto, justo a seguir reconhece que:

O ideal para calquera lingua sería unha ortografía fonética, mais moitos idiomas contan cunha historia ortográfica que lles empece unha revisión neste sentido […].

Ideal para quem? Ideal para que? Do ponto de vista do aprendizado da língua e das suas regras, uma ortografia fonética parece, a priori, o mais simples e, portanto, o mais eficaz. Mas é mesmo assim? Depende.

Imaginemos um ovo. Já sabeis, isso que põem as galinhas e donde nascem os pitos. Na Galiza e no resto da Lusofonia grafamos o-v-o. Como grafaríamos se tivermos uma ortografia foneticista? Se eu fosse português, poderia grafar ô-v-o ou ainda ô-v-u. Se eu fosse de Cacheiras (Teu), poderia grafar ô-b-o. Mas como sou de origens chairegas, seria-me melhor grafar ó-b-o.

Uma única realidade e quatro possíveis escritas se a nossa língua tivesse uma ortografia foneticista. Isto mesmo acontece em muitas outras línguas, daí que as grafias foneticistas, que a lógica a priori fazia mais desejáveis, ainda não triunfassem.

Nem no aparentemente mais simples castelhano é possível este exercício foneticista, porque ainda que Juan Ramón Jiménez insistia em se referir à gente como jente, optava por setiembre —antes dessa forma ser aceite— e não «septiembre» ou ombre por «hombre», não parece prático no dia de hoje grafar piesa de casa mayor por «pieza de caza mayor». De facto, o próprio Jiménez tinha as suas contradições, como o uso de «excelente», quando polo seu próprio critério devesse grafar exelente ou talvez eselente.

Uma ortografia tem múltiplas funções. É reflexo de uma história, por isso algumas escolhas são vestígios históricos sem maior funcionalidade, como a presença do H no nome próprio Henrique (do germânico Heinrich), que por pronúncia poderia ser na mesma Enrique —como o castelhano Enrique ou o italiano Enrico—. Da mesma maneira, outras escolhas —neste caso por ausência— também são fruto da história, como a queda do H no latim Hispania que dá na atual voz Espanha. A própria grafia supostamente etimologista do galego ILG-RAG tampouco é puramente etimológica, porque nem grafa Hespaña nem, por exemplo, himberno (latim hibernu).

Para o caso galego-português, pola sua própria configuração histórica, um dos objetivos que se procurou foi o de servir ao maior número de falantes, fazendo com que uma única grafia representasse múltiplas pronúncias. Dá-se o paradoxo de haver hoje em dia casos em que a ortografia portuguesa serve melhor para representar as falas galegas do que as portuguesas ou brasileiras. Exemplo disso é a própria palavra exemplo [izêmplu], ou também outras como azinheira [azinhaira, PT] ou feira [fêra, BR].

Luso-reintegracionistas todas, todos!

Neste e noutros artigos, o senhor De la Calle insiste em criar uma diferença artificial entre reintegracionistas e lusistas. Segundo ele, os primeiros apenas defenderiam uma ortografia portuguesa para o galego, enquanto os segundos defenderiam a pura e dura adopção da norma culta vigorante em Portugal.

É necessário aqui fazer um inciso para reiterar que se trata de uma diferença artificial. Lusistas e reintegracionistas são termos funcionalmente sinónimos: assim nos vemos e assim nos vê a imensa maioria da gente —da gente preocupada por estas cousas, que infelizmente não é a maioria social do País.

Não é mais reintegracionista e menos lusista a pessoa que escreve coraçom que a que escreve coração. Não é mais ou menos galega a pessoa que escrever fezfizo ou fijo para representar a terceira pessoa do singular do pretérito do verbo fazer.

Sou ciente de que há pessoas interessadas em criar essa diferença. Sou ciente, também, em que por inconfessáveis interesses há quem está disposto a alimentá-la. Mas perdem o tempo: luso-reintegracionistas todas, todos!

Aprendizagem e memória

A seguir, e aí vem o mais meritório do seu trabalho, o senhor De la Calle faz um enorme exercício de compilação de divergências ortográficas entre o português moderno e a norma oficial ILG-RAG. O objetivo, intuo, é assinalar a dificuldade que traria ao povo galego a mudança de uma ortografia para a outra, com muitas palavras que mudariam a sua forma, inclusive a sua morfologia —naqueles casos em que o termo galego é um claro castelhanismo—.

Alegadamente, as galegas e galegos deveriam fazer também um grande exercício de memória para reterem as formas corretas das palavras, um esforço maior que o de um português ou um brasileiro, porque em muitos casos uma ortografia determinada implica —mais para eles do que para nós— uma determinada pronúncia.

Não obstante, todas as ortografias são em boa medida memorísticas, pois, como afirmava no início, tampouco há uma adequação perfeita entre a língua escrita e a língua falada. Talvez nós tenhamos que fazer maior esforço para lembrarmos o uso correto de V e B, de S ou SS, mas provalmente menos trabalho na hora do uso correto de Ç e SS. Descreve isto maravilhosamente o amigo Valentim Fagim no seu imprescindível Do Ñ para o NH, cuja leitura recomendo para já ao senhor De la Calle, e reproduzo só alguns dos muitos exemplos colocados nesta obra: imitir (emitir), verdádi (verdade), tiatro (teatro),  paixe (peixe), animau (animal), brucha (bruxa)…

Parece óbvio que nenhuma pessoa nascida na Galiza cometeria os erros acima indicados, mas são muito correntes em falantes da nossa língua que procedem doutros países lusófonos.

O inimigo do galego

Um último axioma que gostava de desmentir é que o processo luso-reintegracionista implicaria a «desaparición de gran parte do noso léxico patrimonial (na comparación uso o léxico estándar de ambos os idiomas tirado do dicionario da RAG e do dicionário Priberam, pois as formas minoritarias coincidentes coa outra lingua non se recollen nos estándares)».

Antes de mais, é necessário indicar que na construção de uma norma culta sempre acaba havendo danos colaterais. A norma culta tende a fazer homogénea a língua, reduzindo a sua riqueza no que diz respeito das variantes: uma ideia, uma palavra. Não é que isto seja bom ou mau; eu, particularmente, defendo a diversade, mais ainda quando não representa um obstáculo para a comunicação.

Muitas palavras genuinamente galegas hoje já só fogem da extinção graças ao labor de lexicógrafos como Isaac Alonso Estraviz e o seu Dicionário. A progressiva —e, por enquanto, imparável— desaparição de falantes de galego, junto ao despovoamento do meio rural e a concentração dos falantes de galego em cada vez um menor número de núcleos —urbanos e periurbanos— está a fazer de facto que o léxico galego se empobreza. E não me refiro com isto ao incremento de castelhanismos estritos —também—, mas ao facto de cada vez usarmos um menor leque de palavras e expressões para as mesmas realidades, muitas vezes com termos plenamente coincidentes ao castelhano —sem por isso serem menos galegos.

A galeguíssima palavra uz, que me honro de levar polo mundo dia-a-dia e deixarei em herdo familiar, não vai desaparecer porque haja luso-reintegracionistas que em determinados contextos prefiram a forma comum lusófona urze, mas porque cada vez menos galegas e galegos sabem o que é uma uz porque na vida vírom uma diante. E diz-vo-lo uma pessoa que desde há mais de quinze anos deve explicar, como mínimo uma vez ao mês, o que é uma uz. Cada vez menos galegas e galegos saberão o que é uma uz e, se virem uma diante, dirão «uma planta» —nível máximo do empobrecimento linguístico: não saber os nomes das cousas— ou, se quadra, procurarão no Imagens do Google e o resultado que devolverá será, com sorte, a luso-galaica voz urze e não a castelhana brezo.

Essa é a verdadeira ameaça do galego, não o reintegracionismo. Como bem dixo um dia o amigo José Ramom Pichel, os reintegracionistas, os lusistas, somo-lo porque queremos que o galego não desapareça.


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