Projeto Gaelaico. A festa continua!

Nos últimos meses apareceram em numerosos meios de comunicação frequentes notícias com algo em comum:

  1. Procediam de algo chamado “Proxecto Gaelaico”.
  2. Procuravam justificar, explícita ou implicitamente, uma origem celta de termos do galego atual, mormente no terreno da toponímia.
Se só acontecesse uma ou duas vezes, não passaria de uma anedota, como os frequentes dislates que publicam muitos meios de comunicação sobre assuntos de matéria tecnológica ou científica. Porém, ao se tratar de uma aparição continuada, já começou a parecer uma brincadeira de mau gosto.
O sítio web não tem desperdiço. Mesmo apesar de que prometem achar “a peça que faltava” (da conexão galego-celta) e que o fazem a partir de uma “base linguística sólida”, o certo é que não passa de filologia de taverna, isto é, do mesmo rigor filológico que posso evidenciar eu (ou talvez menos).
Todo o projeto parte de uma conclusão, que é a origem celta do galego (língua, povo) e da cultura galega. A partir daí, tece-se a história que o justifique. Repito: a conclusão está pré-estabelecida, é imutável, e em diversos textos do sítio web assim o confirmam e apontam que o vão procurar justificar. E eu que pensava que o método científico situava as conclusões no derradeiro lugar, não no primeiro!
A construção deste grande e elaborado sistema de patranhas poderia-se resumir assim:
  1. Identificamos um termo/expressão/topónimo galego que se parece com um equivalente celta.
  2. Tecemos a história que permita justificar a origem celta.
  3. Nessa história, misturamos elementos plausíveis com outros inverossímeis. Ou seja, o que se chama contar médias verdades.
  4. Enviamos nota de imprensa a vários meios de comunicação, provavelmente acompanhada de algum telefonema, e retroalimentamos a máquina.
  5. A máquina engraxa-se com dinheiro (pode-se ser sócio do projeto por 50€ ao ano… anima-se alguém?).
Um exemplo prototípico disto que acabei de esboçar é o artigo sobre as formas mór (maior) e meã (mediana). Deixo-vos que sejais vós a perderdes o tempo com a justificação da origem celta dos termos, obviando a evidentíssima origem latina. O caso é que mór condiz com a forma gaélica para maior, polo que “é evidente” que o galego “mór” procede diretamente do celta, não do latim. Polo caminho, obviam que o processo foi maiore (latim) > maior > maor > mór, como prova o facto de ainda existir na oralidade galega a forma “maor”, e que a redução oa/ao para “ó” seja um dos fenómenos mais frequentes no galego… Precisamente, minha avó, quando se enfadava, dizia “cago no demo maor“.
Por outra parte, a reconstrução (ou convivência!) de palavras patrimoniais para estágios anteriores (mór/maor > maior) não é algo estranho em em galego. Fiquem apenas como exemplos os pares vedra e velha (Ponte Vedra, que não é senão Ponte Velha, do latim veterem > veteram) ou Eireja (topónimo) ao pé de igreja (do latim ecclesia); e, já fora da toponímia, o par caravilha e chavelha (latim clavicula).
Na toponímia e microtoponímia galego-portuguesa temos exemplos do uso de Mór, como Pedra Mór, Vila Mór ou Souto Mór.
Apesar da evidência, do projeto Gaelaico ligam diretamente o mór galego-português com o mór gaélico, que significa grande (não maior). No alargado artigo nem sequer referem formas ainda vivas como morgado ou mormente, que incluem o mesmo termpo. SEM COMENTÁRIOS.
De meã, pouco mais tenho a dizer, fora da sua alargada presença toponímica e, por extensão, antroponímica, neste último caso como apelido. Vou colocar vários exemplos, tanto de toponímia maior como menor: [as] Meáns (Cambados, Vigo, Sárria…); [as] Meás (Cela Nova, Póvoa de Trives); Meám (Vedra); Caminho das Meás (Póvoa de Trives); Granda Meá (Cospeito); [o] Souto da Granda Meám (Catoira) e inúmeros Vila Meá(m) e até Vilar Meám.
A forma meã procede do latim mediana. O processo é transparente e conhecido: queda do -d- e -n- em posição intervocálica, ficando me-i-ã-a (nasalação do ã, que se converte aliás em vogal longa). No galego da Galiza, a queda da consoante nasal resolve-se quer com a completa supressão da nasalação (meãa > meá) ou com a recuperação da consoante nasal, perdendo-se nasalidade da vogal (meãa > meám). É exatamente o mesmo que acontece com a palavra manhã (lat. vulg. maneana > manhãa > manhá / manhám).
Mais uma vez, apesar da clareza da explicação, do projeto Gaelaico ligam o galego meã (ou meám, ou meá) com a voz gaélica para pequena (não mediana)… SEM COMENTÁRIOS.
A pedra, a famosa pedra
Vários meios de comunicação publicaram a notícia de um surpreendente achádego: uma pedra escrita em gaélico na Galiza do século XIV. Do projeto Gaelaico apesentaram num ato público documentos gráficos da tal pedra, bem como a sua tradução… tradução aliás explícita: “lugar de fala gaélica”. Evidentemente, de ser certo, implicaria repensar tudo quanto críamos saber sobre a Galiza e sua história, e deixaria-nos no mínimo três grandes perguntas:
  1. Por que existe uma inscrição em gaélico num sítio tão elevado a partir do qual é quase impossível a leitura?
  2. Por que não existe qualquer testemunho escrito que mencione no século XIV a presença na Galiza de indivíduos de fala não galega (deixando fora castelhanos e outros ilustres visitantes estrangeiros)?
  3. Se essa população gaélico-falante era nativa da Galiza, como podia manter um continuum escrito com o gaélico literário da época, mais ainda num contexto de pouca alfabetização e sendo a existente apenas em latim?
Do projeto Gaelaico publicaram um alargado artigo justificando a sua interpretação e leitura do texto. E quando digo alargado não estou a exagerar! E, porém, em menos de 140 caracteres apareceu alguém a desmontar a história: bastava dar a volta à pedra!!!
Com efeito, como podereis ver na composição de imagens que junto, do projeto Gaelaico cometeram uma interpretação que mais bem parece invenção ou manipulação, aliás necessária para justificar a leitura de “lugar de fala gaélica”. Como vereis, por muito que o intentem edulcorar no alargado artigo, do Gaelaico inventaram do nada uma letra (imagem 3, em vermelho) que não se vê na imagem 1. No artigo, é certo, publicam uma imagem com maior perspetiva, mas na mesma continua sem aparecer o tal caractere.
E, como incado antes, com só dar a volta à pedra, isto é, colocado abaixo a parte que está acima… surpresa!!! Uma inscrição que põe “nada” (nascida), escrito em letras capitais góticas do século XIV. Que desgraçada a realidade, sempre estropeando boas histórias!!!
(Prime na imagem para amliar)
BONUS TRACK
Bieito Romero, líder de Luar na Lubre, pedindo-lhes aos do projeto que não a caguem… simultaneamente a esta cagada épica!
(Prime na imagem para amliar)

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