História de um raposo…

vulpes vulpes… ou, melhor dito, do seu rabo. O raposo (Vulpes vulpes) é um canídeo que, igual que as pegas (Pica pica), não goza de muita admiração no nosso país, o qual fica comprovado em inúmeros relatos nos quais se dá uma versão negativa destes animais, como também em ritos e actividades que ultrapassam os limites da crueldade (do enforcamento de raposos à crucifixão de pegas).

O raposo era conhecido como vulpes polos romanos (vulpes, -ix). Através do acusativo do latim seródio, vulpe, chegou-nos a forma golpe em galego, actualmente só viva na zona setentrional da Galiza (aproximadamente coincidindo com o bispado mindoniense, da zona de Ferrol a toda a Marinha e alguns pontos da Terra Chã). Hoje em dia é possível que se escuitemos golpe pensemos primeiro numa acção física e não neste animal… contudo o equívoco nem sempre existiu na nossa língua, pois esta outra acepção de golpe chegou através da forma occitano-catalã colp.

Voltando para o golpe, apesar desta denominação ser muito infrequente em galego-português, há vários topónimos Golpilheira (ou Golpilheiras) na Galiza, mesmo em zonas nas quais o animal já é chamado de raposo… e mesmo em Portugal há uma freguesia com esse nome no concelho de Batalha (distrito de Leiria, na zona média do país irmão). A golpilheira é o tobo no qual vivem os raposos, e procede do baixo latim vulpecularia. Outros testemunhos (mas estes mais móveis e instáveis do que a toponímia) de que a forma golpe pôde ter estado mais estendida é a antroponímia, pois o apelido Golpe (1.043 ocorrências segundo a Cartografia dos Apelidos) localiza-se em todo o país, da Marinha à Baixa Límia… ainda que pola maior concentração, possivelmente as suas origens estejam no golfo Ártabro (em concreto, Coirós e Vilar Maior concentram o maior número das ocorrências).

Mas, uma cousinha: não ia este artigo sobre a história de um raposo e do seu rabo? Pois sim… vai sendo hora de entrarmos em matéria. Polos vistos, o rabo deste animal espertou alguma estranha fixação nos galegos (e nos portugueses), e o canídeo começou a ser denominado raposo ou raposa, forma que procede de “raboso” (ou “rabosa”), inspirada polo chamativo rabo do canídeo. Desconheço os motivos desta mudança de nome, mas das poucas vezes que vi um raposo (geralmente só de deixam ver a partir do serão ou da tardinha) pouco mais alcancei a ver que o seu lombo e o vistoso rabo.

Também no país vizinho, Espanha, a forma latina para designar o raposo morreu (que eu saiba), sendo substituída por uma palavra galego-portuguesa, zorro, utilizada para falar de algum malandro, de alguma pessoa preguiçosa, ou de alguém astuto ou que utiliza artimanhas para lograr os seus fins. Novamente vê-se que a aversão galega aos raposos não é só galega: deveu comer também galinhas espanholas :D!

No catalão, também o golpe deixou de ser tal, e actualmente existem duas formas (ambas femininas) para designar este animal: guineu (na Catalunha) e rabosa (em Valência). Rabosa?? Vaites, como raposa/raposo, novamente o rabo anda enleando a história…

As casualidades não ficam aí, e tampouco o francês se librou deste curioso processo de substituição da voz latina por um outro vocábulo, e em finais do século XIX (que em linguística vem sendo ontem) a voz goupil (prima-irmã do nosso golpe) foi trocada pola voz renard, polo raposo Renard (antigamente, Renart, procedente do germânico Reginhart), protagonista de uma série de relatos procedentes já da Idade Média. De facto, era muito popular a expressão «malin comme un Renard» («mau como um Renard»).

É bastante curioso que três das línguas neo-latinas mais faladas (galego-português, castelhano e francês) nalgum momento da sua história renunciassem maioritariamente à forma latina para designar este animal. Será simples casualidade ou terá algo a ver com a atávica aversão a este canídeo?

Claro que nem todas as línguas românicas fizeram o mesmo, e outras foram mais conservadoras, como o occitano vop (que coexiste com aguinèu, forma irmanada com a catalã guineu), o italiano volpe ou o romeno vulpe.

E agora, a traca final! Existem algumas teorias de que a palavra latina vulpes (em genitivo, vulpix) procederia do grego clássico άλώπηξ (transcrito mais ou menos como *álópex; en grego moderno, αλεπού, *alepú). Sobre isto, não deixa de ser curioso o que podemos ler na wikipédia em inglês sobre a etimologia de fox, nome que dão os anglófonos a este animal:

The Modern English “fox” is Old English, and comes from the Proto-Germanic word fukh – compare German Fuchs, Gothic fauho, Old Norse foa and Dutch vos. It corresponds to the Proto-Indo-European word puk- meaning “tail of it” (compare Sanskrit puccha, also “tail”). The bushy tail is also the source of the word for fox in Welsh: llwynog, from llwyn, “bush, grove” [1]. Lithuanian: uodegis, from uodega, “tail”, and Portuguese: raposa, from rabo, “tail”. [2]

Por se alguém não percebe bem inglês, vem dizendo que existe um substrato comum ao étimo latino vulpes e à palavra germânica que deu o actual fox. Trataria-se de uma voz de origem proto-indo-europeia *puk que faria referência à cauda do raposo. Parece comprovar-se , pois, que às vezes a história é cíclica e que o rabo do golpe foi um elemento chamativo também noutras culturas, não apenas na galego-portuguesa.


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Comentários

3 comentários a “História de um raposo…”

  1. Avatar de alema

    a miña achega a este artigo
    é un falar (moi rural el, por certo) que di:
    “non sabe o raposo das galiñas que dormen fóra”

    ou sexa
    -> hai que ver cantas cousas hai por aí que descoñecemos
    😉

  2. Avatar de one2
    one2

    mui interessante!

    PS: vulpix era um pokémon 😀